quarta-feira, 3 de fevereiro de 2021

 

CONSELHO TUTELAR NÃO APURA “DENÚNCIAS”?





O caso de um menino de 11 anos resgatado pela Polícia Militar na cidade de Campinas, São Paulo, chocou o país A criança era mantida dentro de um barril de metal, presa pelos pés, mãos e cintura. De acordo com a reportagem a criança estaria nessa situação há um mês e estava em estado de magreza visível, coisa que se viu em campos de concentração nazista e em lugares em que a fome assola.

Chama atenção aqui o fato de que o Conselho Tutelar já vinha acompanhando o caso, acerca de um ano, como relatado pelo conselheiro tutelar entrevistado. Segundo ele, a família estaria sendo acompanhado pelo CREAS e que apesar dos maus tratos anteriores, nunca se cogitara de algo de tal gravidade. Até ai tudo, bem.

O problema ocorre quando a vizinhança, que denunciou o caso à Polícia, afirma que fez o mesmo ao Conselho Tutelar.

O conselheiro tutelar, por sua vez afirmou, que o órgão não investiga denúncias. (vamos entender aqui a denúncia como noticia de fato, aquele comunicado do ocorrido). O mesmo, ainda na fala, disse que iriam apurar se houve falha no atendimento.

Essa é uma afirmação recorrente que escuto de alguns conselheiros, que o Conselho Tutelar não é Polícia, que ele não investiga fatos, etc. Em parte, isso é verdade, como veremos. Mas não justifica a inércia diante de situações como essa.

Primeiro temos que entender algo: o Conselho Tutelar foi criado pelo ECA no contexto da mudança da doutrina da situação irregular para a doutrina da proteção integral com a finalidade de se desburocratizar o atendimento a crianças e adolescentes, que se encontravam concentrados nas mãos dos “juízes de menores”. Isso ocorreria porque se pressupõe que um órgão administrativo seja mais célere no atendimento, além do fato de que os Juizados se encontram geralmente em cidades sedes da atuação do Poder Judiciário, chamadas de comarcas e não em todas as cidades. Outro ponto importante, foi que o Conselho Tutelar funciona como um órgão em que a própria comunidade participa na proteção de crianças e adolescentes.

O Conselho Tutelar de fato não é órgão responsável para apuração de crimes previstos no ordenamento jurídico brasileiro, como no caso, em que se configura vários deles, como maus-tratos ( art. 136 do Código Penal ), cárcere privado ( art. 148 do Código Penal) e tortura ( Lei 9.455/97 ). A investigação criminal, para responsabilização dos responsáveis fica ao encargo da Policia Investigativa ( art. 144 da Constituição Federal). Isso, no entanto, não quer dizer que o Conselho Tutelar deve ao receber uma “denúncia “ desse tipo, ignorar o caso ou apenas remetê-lo para outros órgãos, como Polícia e Ministério Público. Afinal, a criança ou adolescente que sofre um crime não precisa apenas de Justiça( no sentido de que o culpado seja responsabilizado criminalmente), mas precisa também de proteção, e o Conselho Tutelar aplica as chamadas medidas protetivas previstas no art. 101, I a VI do ECA.

O próprio Estatuto da Criança e do Adolescente prevê, em várias passagens a obrigatoriedade de comunicação de maus tratos ao Conselho Tutelar (arts. 13, 56, I, 70-B, 94-A,). Além do ECA, a Lei 13.431/17 ( Lei do sistema de garantias de direitos de crianças e adolescente vítimas ou testemunhas de violência ) também afirma essa obrigatoriedade ( arts. 13 ). O artigo 15, II esclarece que as “denúncias” são encaminhadas ao Conselho Tutelar para aplicação das medidas de proteção.

Ora, para aplicar medidas de proteção o Conselho Tutelar deverá atuar, verificar a ocorrência da situação, acompanhar o caso, inclusive se articulando com a Polícia para juntos garantir a proteção de crianças e adolescentes. No mínimo, o Conselho Tutelar deveria ter acionado a Polícia que atuaria no flagrante e o Conselho Tutelar estaria de prontidão para adotar as medidas de proteção. Outra possibilidade seria a realização de uma visita para verificar as condições em que a criança se encontrava (e nesse caso da recusa de se mostrar a criança, acionar-se ia a Polícia).

A Polícia atuaria realizando o flagrante, e o Conselho Tutelar adotando as medidas de proteção. É o chamado trabalho integrativo, previsto no ECA (art. 70 – A, II ). Afirma-se, aqui que não se está julgando a atuação do Conselho Tutelar da cidade relatada, mas apenas fazendo uma análise a partir do caso concreto, do que a legislação prevê como atuação.

Muitos afirmam que o Conselho Tutelar não deve atuar, pois diante de fatos que indiquem infração penal devem encaminhar o caso para o Ministério Público, fazendo -se uma interpretação equivocada e acho até que desonesta do art. 136, IV do ECA. O Ministério Público por sua vez requisitaria a instauração de Inquérito Policial.

Esse tema será fruto de outro texto que farei, mas por enquanto, só para se verificar o absurdo, imagine-se se toda notícia de crime passasse primeiramente pelo Ministério Público para depois ser encaminhado para a Polícia, onde estaria a desburocratização e agilidade no atendimento de crianças e adolescentes tão sonhada pelo ECA? Além disso transformaria o Ministério Público num órgão de triagem de denúncias para a Polícia. Só por ai se vê a irrazoabilidade do entendimento.

Fico muito preocupado com interpretações negacionistas  de o Conselho Tutelar nesse tipo de caso e em outros. Primeiro por que não é o previsto na lei, depois por que o Conselho Tutelar fica fragilizado perante a sociedade, que passa a ter a impressão de que o órgão se trata de um “elefante branco”, ou seja, não serve para muita coisa, e quando um órgão perde a sua função social, perde também a razão de existir.

A razão principal é que nesse caso se trata de situação de risco. É verdade, mas todos os que atuam na proteção de direitos humanos vez ou outra devem saber que a atividade corre certos riscos. Por isso a necessidade de atuação em conjunto com outros órgãos, como polícia e Ministério Público.

Do exposto lógico que o Conselho Tutelar atua em casos de violência contra crianças e adolescentes e para isso deverá realizar alguma verificação da situação, principalmente por meio de uma visita inicial e havendo necessidade, deve acionar outros órgãos como a Polícia e o Ministério Publico. O Conselho Tutelar não fará é apuração criminal ( intimação do acusado, oitiva de testemunhas, etc) para responsabilizar os culpados, essa é função da Autoridade Policial. Em casos de flagrante o Conselho Tutelar deve atuar em parceria com a mesma.


José Claudeir Batista Alcântara

Especializando em Direito da Criança e do Adolescente.


Fonte:

https://www.bol.uol.com.br/noticias/2021/02/01/vizinhos-afirmam-que-pais-de-crianca-encontrada-em-barril-pareciam-gentis.htm



2 comentários:

  1. Meu caro Claudeir, Parabenizo-o pela brilhante explanação acerca deste fato que recentemente nos sacudiu e nos chama a uma reflexão acerca das Competências e atribuições institucionais em favor de um segmento tão fragil, que é nossa Infância e Adolescência, seu artigo bastante didatico, precisa ser refletido entre aqueles que se dispoe a enveredar pelos caminhos da Garantia de Direitos Infanto Juvenis.

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  2. Parabéns pelos esclarecimentos acerca da atuação do conselho tutelar. Uma contribuição necessária, sobretudo pela análise feita desse triste fato nocivo para a(s) criança(s) e a sociedade.

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